Acordei antes das 5h com um barulho de tosse, tudo escuro ainda lá fora. Encontrei meu filho vomitando no vaso sanitário. Aquele era o primeiro dia de aula após o recesso. Aliviado e medicado, ele voltou a dormir. Eu fui me aprontar para levar a filha à escola.
Foi assim que a minha semana começou. A volta às aulas combinada a uma inesperada virose me trouxe de volta à rotina. Acordar cedo para preparar o café da manhã e levá-los à escola me ancora no dia, me coloca de frente com os afazeres, as atividades, o ritmo da vida. E, desse modo, eu me exercito melhor, me alimento melhor, trabalho melhor.
As férias são necessárias e desejadas, um respiro lá no alto antes de voltar a nadar, mas é na rotina que a gente atravessa a raia de uma borda a outra. Uma semana, afinal, é feita de muitas braçadas.
Foi durante esse respiro que eu assisti ao filme Dias Perfeitos, do Wim Wenders, cujo enredo aborda justamente… a rotina. Pelas lentes do aclamado diretor alemão, acompanhamos o dia a dia de Hirayama, um japonês que mora numa casa diminuta e trabalha limpando banheiros públicos (bem modernos e estilosos, diga-se de passagem) em Tóquio.
A trilha sonora é, praticamente, um personagem à parte - e um espetáculo que torna o filme muito mais saboroso. Enquanto ela permeia a obra, vemos os movimentos repetidos de Hirayama, ao acordar, escovar os dentes, pegar um café em lata na máquina, dirigir até os locais de trabalho, limpar os banheiros. Em momentos de folga, o vemos fotografar árvores e revelar essas fotos, ler um livro, ouvir fitas cassetes.
O interessante é ver o quanto de beleza ele é capaz de encontrar em meio a essa rotina estreita. As nuvens no céu. O farfalhar das folhas nos galhos. As frases dos livros. A música. As sombras no chão. Dias Perfeitos nos mostra que há encantamento mesmo em meio ao concreto e à repetição. Só depende do olhar.
Eu, que vivo de escrever, tento treinar o meu olhar dessa forma… para observar o que me rodeia e reparar nas pequenezas que podem passar despercebidas. Outro dia botei reparo numa espécie de onda bem longe no mar e me dei conta de que havia algo ou alguém ali. Não descobri ao certo o que era, mas o episódio acabou virando crônica.
No filme, Hirayama tem pouca interação com outros personagens. Lá pelas tantas, uma sobrinha dele aparece para mover as peças da sua previsível rotina e acaba trazendo de volta uma esquecida ligação familiar. Nem tudo que parece organizado está bem resolvido, afinal. E nem toda rotina, por mais bem delimitada que seja, está imune às imprevisibilidades da vida.
É como o filho vomitando antes do amanhecer do dia, lhe obrigando a levantar pelo menos 45 minutos antes do despertador e perdendo aula. A rotina, tão sólida, é, ao mesmo tempo, fina, porosa, frágil. Tão previsível, mas jamais definitiva.
Ela me sustenta tanto quanto sou eu que a sustento também. A cada espiada no céu. A cada café demorado na varanda. A cada página de leitura. A cada olhar no mar. São essas fissuras miúdas na parede gasta da rotina que a fazem assim especial… e é por isso que, mesmo fugindo dela, eu sempre me apronto pra voltar.
Obrigada por me acompanhar nesta Trilha de hoje! E que tal me contar o que achou do texto de hoje?
Nos vemos em breve. Até a próxima!
Abraços literários,
Luisa Sá Lasserre
Li os dois, são ótimos mesmo. Matéria Escura não vi a série ainda, mas soube que parece confusa (imagino que para quem não leu o livro...). Os Malaquias, trago um spoiler: vai virar filme ;)
Sabe que não gostei do filme (entendi o ponto, mas não comprei o personagem), mas adorei seu texto!